Os esportes olímpicos são, cada vez mais, das mulheres
A participação das mulheres nas competições esportivas evoluiu, mas a briga para igualar a importância do esporte masculino não se dá sem dificuldades
Na abertura dos Jogos Pan-Americanos deste ano, o México fugiu à regra dos países que sediam grandes competições esportivas ao abrir mão de escalar seu atleta mais premiado ou o de maior potencial para acender a pira no estádio Omnilife, em Guadalajara. Quem teve a missão de carregar a tocha pan-americana foi Enriqueta Basílio, de 63 anos, uma veterana. A escolha de Enriqueta foi simbólica, principalmente para as mulheres. Em 1968, nos Jogos Olímpicos da Cidade do México, então corredora Enriqueta se tornou a primeira mulher da história a acender a pira olímpica, um reconhecimento por sua importância para o esporte mexicano na época. Desde então, a participação das mulheres nas competições esportivas vem evoluindo de forma intensa, mas a briga para igualar a importância do esporte masculino não se dá sem as dificuldades parecidas com aqueles enfrentadas pelas mulheres em qualquer outra área.
Enriqueta se lembra com emoção da reação do público quando ela surgiu no estádio em 1968 com a tocha olímpica na mão. “Foi uma surpresa para todos, porque significava uma mudança na tradição”, diz. “Foi um divisor de águas em um país tão machista”, conta. Dois anos depois da consagração, Enriqueta enfrentou um dilema: manter a carreira de atleta de alto nível ou constituir uma família. Em 1970, ela decidiu. Aos 22 anos, abandonou a carreira para casar e ter filhos. Apaixonada pelo esporte, voltou a atuar na área, mas como dirigente. Foi deputada federal e hoje é integrante permanente do Comitê Olímpico Mexicano.
A divisão entre a carreira e a família não é a única dificuldade das mulheres esportistas. Historicamente, o esporte sempre foi “coisa de homem”. Na Antiguidade, as competições eram uma forma dos guerreiros provarem sua virilidade e habilidade para a luta. As competições femininas eram meras preliminares. “Caso uma mulher tentasse competir nas provas masculinas, corria o risco de ser condenada à morte”, diz Cláudio Nogueira, autor do livro “Zeros à Direita”, sobre a política esportiva brasileira. Para Nogueira, é preciso que as federações ajam para quebrar preconceitos. “A natação, por exemplo, teve que começar a investir em formação para as nadadoras entendessem que mesmo ficando musculosas as mulheres continuam bonitas e femininas”. Nogueira lembra que a discriminação pode ocorrer também em casa: “Se pensarmos em futebol, dificilmente um pai compra uma bola para uma menina, mas compra para o filho”, diz.
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Outra dificuldade das mulheres é que ainda há modalidades consideradas masculinas demais para elas. O boxe, disputado pelos homens nas Olimpíadas desde 1904, terá em 2012, pela primeira vez, a versão feminina. Os Jogos Pan-Americanos também abrem seus ringues para as mulheres pela primeira vez, uma conquista que foi resultado da insistência de uma lutadora.Conhecida e reconhecida por seu braço forte, a ex-pugilista americana Christy Halbert, hoje técnica, trabalha há 15 anos pelas mulheres pugilistas ao redor do mundo. Ela tem ajudado a dar visibilidade ao esporte, a aumentar o nível técnico das pugilistas e o número de mulheres na modalidade esportiva. Christy começou sua campanha em 2007. “Sob um ponto de vista intelectual, eu não podia imaginar que era possível que alguém pudesse justificar não ter mulheres em todos os esportes”, conta. Christy e todas as pugilistas do mundo tiveram que esperar até 2009 para ver o COI votar a favor da empreitada. “Eu sempre me pego pensando sobre o efeito dessa experiência na vida das boxeadoras fora dos ringues”, diz emocionada. “Todas as atletas merecem a oportunidade de participarem do esporte que escolhem, de alcançarem todo o seu potencial, de serem respeitadas”, afirma.
Duas boxeadoras brasileiras estiveram no Pan de Guadalajara – Roseli Feitosa e Adriana Araújo. Adriana conta que muitas vezes escutou seus colegas (homens) de ringue dizer que ela deveria estar atrás de um fogão, porque ali não era lugar de mulher. “Os resultados mostraram que a mulher não é pra ficar dentro de casa, que a luta é de igual pra igual”, argumenta. Adriana chega ao México com cinco títulos como campeã dos Pan-americanos de Boxe e participação em torneios nacionais e internacionais. Roseli também comemora a vitória e diz que assim que o esporte alçou o patamar olímpico, conseguiu um importante patrocinador. “Hoje ganhamos o mesmo que os homens, mas porque somos da seleção, ainda há muitas mulheres que acabam desistindo porque não podem se dedicar ao esporte como ele exige”, diz a atleta que é tricampeã paulista, bicampeã brasileira, bicampeã do Torneio das Estrelas, bicampeã do Pan-americano de Boxe, e campeã mundial em 2010.
A jornalista Raquel Ruiz, colombiana que mora nos Estados Unidos e é apaixonada por boxe, chegou a treinar para compreender o universo do boxe feminino. “Ainda existe preconceito, inclusive por parte de juízes que dizem: ‘eu não deixaria minha namorada boxear. Mulher precisa manter a beleza”, conta Raquel que está escrevendo o livro “Punching the gold” (Acertando o ouro) sobre a vida e as dificuldades que enfrentam as mulheres que optam por esse esporte. “Tudo que se relaciona com a mulher está ligado à imagem física, não com seu emocional”, conclui.
A campanha oficial
A ex-nadadora brasileira Christiane Paquelet, que representou o Brasil em Pan-Americanos e Olimpíadas, atualmente trabalha para o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) como diretora cultural e também é membro da Comissão da Mulher que representa o Brasil. “O trabalho dessas comissões é importante para capacitar as atletas a serem mais ativas, a terem mais segurança e a pleitear seus cargos administrativos”, explica. Christiane conta que cada comissão lida com problemas diferentes, porque em cada país a cultura é um elemento importante a ser considerado. “As comissões inclusive discutem uniformes específicos para mulheres. Nos países árabes, conseguimos que uma grande fabricante fizesse um uniforme com burca”, conta. Esse trabalho pode facilitar o trabalho das atletas e evitar problemas como os que enfrentou Jacqueline Silva, que ao lado de Sandra Pires ganhou o primeiro ouro olímpico feminino do Brasil, em 1996, no vôlei de praoa. Ex-levantadora da seleção brasileira de vôlei de quadra, Jacqueline precisou brigar com os dirigentes da equipe para receber verba de patrocínio. Largou tudo, foi para os Estados Unidos e passou a se dedicar ao vôlei de praia, uma novidade então. Jacqueline transformou-se na rainha das praias americanas. A vitória da dupla na Olimpíada de Atlanta mostrava uma clara evolução do avanço das mulheres no esporte no Brasil.
Entre as 19 ex-atletas olímpicas que trabalham no Comitê Olímpico Brasileiro está Adriana Behar, também ex-jogadora de vôlei de praia, com duas medalhas olímpicas de prata e uma de ouro. Em 2010 ela assumiu a função inédita no meio feminino como chefe de missão dos primeiros Jogos Olímpicos da Juventude, realizados em Cingapura. Para Adriana ainda falta investir mais no esporte feminino e desenvolver leis que favoreçam empresas privadas e públicas para que invistam mais. “Se há investimento desde a base, há mais chances de formar atletas com maiores possibilidades de competir”, diz.
É nisso que também acredita outra brasileira que conquistou o mundo como atleta e hoje luta por maior participação da mulher no meio esportivo e mais qualidade para as atletas com quem trabalha. Hortência, chamada de “rainha do basquete” por sua habilidade no esporte, jogou até ter filhos em 1996. Hoje é diretora das Seleções Brasileiras de Basquete (do sub 15 ao adulto), membro do Conselho Nacional do Esporte e presidente da Comissão Feminina da Federação Internacional de Basquete (FIBA). E com a mesma dedicação e determinação que demonstrava para fazer cestas garante: “Vamos investir muito na mulher porque os resultados são rápidos e isso vai trazer mais medalhas para o Brasil”, afirma. “Eu quero igualdade, o mesmo prêmio, o mesmo espaço, a mesma diária que recebem os jogadores.”
O secretário nacional de Esporte de Alto Rendimento, Ricardo Leyser confirma que está sendo preparada uma “agenda lilás” para o Esporte Brasileiro. “A ideia é ser mais ativo na promoção das modalidades femininas e promover um maior equilíbrio de gênero”, informa. Com isso “o Brasil ganha muito, com as mulheres ajudando a construir um país com potência esportiva mundial”, afirma.
Aos poucos, vai ficando claro que o investimento no esporte feminino compensa. O professor José Eustáquio Alves, doutor em demografia da Escola Nacional de Ciências Estatísticas, desenvolveu um estudo em que tenta mostrar como a participação das mulheres tem crescido nos esportes, particularmente nas Olimpíadas. Ele destaca o exemplo do Comitê Olímpico do Reino Unido, que está se esforçando para que haja paridade entre os sexos na delegação local para os Jogos do ano que vem. A medida não é apenas uma questão de igualdade. “As mulheres ajudaram o país a ficar em uma posição melhor no ranking de medalhas”, diz. “Isso significa que o resultado feminino foi melhor do que o masculino no que diz respeito às medalhas de ouro nas Olimpíadas de Pequim”, diz.
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